13 de jan. de 2010

LEITURAS DA MÍDIA PELO PROF. SÍRIO POSSENTI

Sírio Possenti

De Campinas (SP)

Andei lendo e ouvindo coisas sobre o tal decreto do governo que promoveria uma revisão da lei da anistia e atacaria a democracia em diversas outras frentes (liberdade de imprensa, direito à justiça etc.). Não sou jurista, nem historiador, nem militante ativo da causa, nem fui preso durante a ditadura. 
Então estava um pouco por fora. Por mais que desconfie de nossa mídia  ”profundamente democrática” – ela apoiou a ditadura enquanto deu, às vezes emprestando caminhões para fazer o trabalho dos camburões -, como só lia textos desancando o programa, estava achando que desta vez Lula e Vanucchi, principalmente, tinham botado os pés pelas mãos. Ouvia o Boris, lia a Dora Kramer mas, no máximo, ficava desconfiado,  afinal, não à toa ambos são o que são.

Juro que não me ocorreu o óbvio, ou não me ocorreu nenhuma de duas seguintes obviedades: ir ao site da Secretaria dos Direitos Humanos (o documento deveria estar lá – só fui ler depois dos eventos que narrarei abaixo); b) se nenhum jornalão publicou o decreto, talvez fosse para evitar que os leitores tivessem acesso a ele, o que desmentiria facilmente as análises parciais.

Até que no sábado, dia 9 de janeiro, lendo página inteira do Estadão sobre os vícios do Programa (o jornal apoiou o golpe de 64, mesmo depois de seus donos terem penado com a ditadura de Getúlio; há coisas que nem os Mesquita aprendem ou não é um problema de aprendizado!), deparei com um box modesto, que dava voz a Paulo Sérgio Pinheiro, militante da causa dos direitos humanos mundialmente reconhecido e que foi titular da Secretaria dos Direitos Humanos durante o governo FHC (sim, FHC). 
O que dizia Pinheiro? Duas coisas: defendia o programa, como era de esperar de um militante da causa; mas, principalmente, que ele não tem novidade, que tudo o que está nele, a rigor, vem do governo e dos programas anteriores.

Aí tem coisa, eu pensei. Se o Programa vem de um governo anterior (depois soube que é o terceiro) e se está sendo tão criticado agora, então tem dente de coelho. A mídia  - nem todos os jornalistas, mas a grande maioria dos que cobriram o tema ou opinaram sobre ele – transferiu para o programa inteiro as características criticáveis, segundo um certo viés, ainda mais discutível do que o Programa, de algumas passagens.

No domingo à noite, assisti ao PAINEL, programa coordenado por Wiliam Waak, num canal de TV. Lá estava o ex-ministro da Justiça de FHC (sim, de FHC) José Gregori, e foi uma bênção poder ouvir um homem decente, cujas intervenções podem ser assim resumidas: trata-se de um programa geral, que prevê a criação de uma comissão cuja função é preparar propostas a serem examinadas pelo Congresso sobre cada um dos itens do Decreto (e o Boris Casoy dizendo que o governo quer, sozinho, sem ouvir ninguém, implantar um projeto ditatorial – disse isso no jornal da Band de segunda-feira. É mentira, Boris! Uma vergonha!).

Para o leitor ter uma idéia de quão mentirosa é a posição de Boris Casoy – e de outros, às vezes menos raivosos -, basta ver a seguinte passagem do texto, exatamente no que se refere ao que foi tratado como revisão da lei da anistia (contesto a afirmação de Boris de que o governo quer fazer sozinho):

a) Designar Grupo de Trabalho composto por representantes da Casa Civil, do Ministério da Justiça, do Ministério da Defesa e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, para elaborar, até abril de 2010, Projeto de Lei que institua COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, composta de forma plural e suprapartidária, com mandato e prazo definidos, para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política no período mencionado, observado o seguinte:

Se o Decreto diz que se criará um Grupo de Trabalho que preparará um Projeto de Lei para criar uma Comissão da Verdade, é óbvio que, qualquer que seja a decisão dos legisladores ¿ e sobre ela se pode ter a opinião que se quiser, como é óbvio – não há como dizer, sendo minimamente honesto, que o governo quer fazer sozinho.

Você acha que o Boris é burro, que não sabe ler? Eu não acho. Acho que ele é um problema de outro tipo (de certa forma, revelado em sua fala sobre os garis).

Por falar em gente que não é burra, a atuação de William Waak no PAINEL, que ele sempre entorta, foi uma vergonha! Ainda bem que lá estavam Sepúlveda Pertence, que não só é do ramo, como trabalhou com Teotônio Vilela exatamente nas negociações do projeto de anistia, em 1979, e o ex-ministro José Gregori, de cuja atuação já falei.

*** Os leitores de Borges conhecem seu “Pierre Menard, autor de Quxote”, conto célebre por muitas razões, mas especialmente porque propõe de forma genial o problema do sentido dos textos. Uma das passagens é a seguinte:

‘Constitui uma revelação cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (“Dom Quixote, primeira parte, nono capítulo):

…a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito de ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.

Redigida no século dezessete, redigida pelo ‘engenho leigo’ de Cervantes, esta enumeração é um mero elogio retórico da história. Menard, em compensação, escreveu:

…a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito de ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro. A história, mãe da verdade: a ideia é espantosa. Menard, contemporâneo de William James, não define a história como indagação da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que sucedeu; é o que pensamos que sucedeu. As cláusulas finais – exemplo e aviso do presente, advertência do futuro ‘são descaradamente pragmáticas’.

O que isso significa? Que um mesmo texto pode ter mais de um sentido. Para o narrador de Borges, os sentidos mudam com o passar do tempo. Mas, no caso do decreto de que estou falando, o sentido muda conforme a posição ideológica do leitor (à exceção de gente para quem a decência está acima do interesse político, como é o caso de Gregori).

Para mostrar isso mais claramente, concluo com a citação de trecho da coluna de Fernando Rodrigues na Folha de 11/01/2010 (aliás, no dia 12 ele publicou longa comparação do Programa atual com os anteriores, e as conclusões são óbvias: não há nada de marcantemente novo).

“Como a idade e a honestidade intelectual me obrigam (sic!) a lembrar o que já vi, eis a seguir dois trechos de outro PNDH mais antigo (cito trechos do que ele citou Folha de  S.P.):

1) Apoiar o controle democrático das concessões de rádio e TV, regulamentar o uso dos meios de comunicação social e coibir práticas contrárias aos direitos humanos;

2) Adotar medidas destinadas a coibir práticas de violência contra movimentos sociais que lutam pelo acesso à terra.

Essas propostas não saíram de uma mente chavista ou subperonista. São do PNDH de 13 de maio de 2002, assinado por Fernando H. Cardoso. (…). Mas os tempos mudam. Mudam então as análises (grifo meu)”.

Ele citou trechos sobre esses dois temas porque são dois dos condenados por estarem no decreto assinado por Lula. Eles imporiam a censura à imprensa e não defenderiam o direito de propriedade, especialmente no campo (ah, e defenderia o MST).

Frequentemente, discordo das avaliações de Fernando Rodrigues. Mas reconheço que ter mostrado esses FATOS em sua coluna é outra mostra de decência. No meio de tanta bandalheira, ele e Gregori foram um consolo.

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.

Fora Boris Casoy!

Por Professor Leandro - Liberdade é Aqui - 13.01.10

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