* Eduardo Galeano |
Ana
Maria Mizrahi - La Ventana
“Cada vez que uma cigana se
aproxima de mim para ler as mãos, peço-lhe por favor, que lhe pago
para que não a leia. Não quero que me digam o que vai acontecer, o
melhor que a vida tem é a curiosidade, e a curiosidade nasce da
ignorância sobre nosso destino. A explosão dos indignados começou
na Espanha e logo estendeu-se para outras partes. É uma boa notícia
a capacidade de indignação. Bem dizia meu mestre brasileiro Darcy
Ribeiro (intelectual brasileiro já falecido) que o mundo se divide
entre os indignos e os indignados, e é preciso tomar partido, é
preciso escolher”.
-Por que esse título, “Los
Hijos de los Dias”(1)?
-Segundo os maias, nós somos filhos
dos dias, o seja, o tempo é que funda o espaço. O tempo é nosso
pai e nossa mãe, e sendo filhos dos dias, o mais natural é que de
cada dia nasça uma história. Estamos cheios de átomos, mas também
de histórias.
-Dentro dessas histórias, há
muitas vinculadas à nossa vida cotidiana. Você assinala: “vivemos
em um mundo inseguro”. A particularidade é que sugere que existem
diferentes concepções sobre a insegurança. A que você se refere?
-Muitos políticos no mundo inteiro
– não é algo que acontece somente em nosso país – exploram uma
espécie de histeria coletiva a respeito do tema da insegurança. Te
ensinam a ver o próximo como uma ameaça e te proíbem vê-lo como
uma promessa; ou seja, o próximo - esse senhor e essa senhora que
andam por aí – podem te roubar, violar, seqüestrar, mentir, rara
vez te oferecer algo que valha a pena receber. Creio que isso faz
parte de uma ditadura universal do medo. Estamos treinados para ter
medo de tudo e de todos, e essa é a justificativa necessária para a
estrutura militar do mundo. Este é um mundo que destina metade de
seus recursos para a arte de matar o próximo. Os gastos militares -
que são o nome artístico dos gastos criminais – necessitam de uma
justificativa. As armas necessitam de guerra, assim como os abrigos
necessitam de inverno.
-Quando fala dos medos, você
joga com essa palavra para assim mencionar os meios e tem uma
história que é “os medos de comunicação”. Que lugar você
atribui aos meios para esses medos?
-Às vezes os meios atuam como
“medos” de comunicação, então se transformam em “medos de
incomunicação”. Isso não é verdade para todos, mas sim para
alguns meios que no mundo inteiro exploram essa espécie de histeria
coletiva desatada pelo tema da insegurança. Mentem, por que a
insegurança não se reduz à insegurança que pode se sentir nas
ruas. Inseguro é este mundo, e em primeiro lugar está a insegurança
no trabalho, que é a mais grave de todas, e da qual os políticos
que exploram o problema da insegurança nunca falam. Não há nada
mais inseguro que o trabalho. Todos nos perguntamos: “Haverá
amanhã quem me compre? Voltarei ao local de trabalho onde estive?
Terá alguém ocupado meu lugar?
Esse medo real de perder o emprego
ou de não encontrá-lo é a fonte de insegurança mais importante.
Por sua vez, inseguro é o mundo, a quantidade pessoas que matam com
os carros nisso que chamamos de acidentes de trânsito, que na
realidade são atos criminais por conta de motoristas que, que
tirando suas licenças para dirigir, tem licença para matar, ou a
insegurança da maioria das crianças que nascem no mundo condenadas
a morrer muito cedo de fome ou de doenças curáveis”
-Aparecem as histórias dos
desaparecidos, mas menciono-lhe uma em particular, chamada de “Plano
Condor”, onde a história que é contada pertence a Macarena
Gelman. Como foi para você conhecer Macarena Gelman?
-Comecei por conhecer o pai de
Macarena, Marcelo, e o avô, Juan Gelman, com quem trabalhei na
Revista Crisis, em Buenos Aires, e que é meu amigo de toda a vida.
São muitos anos de amizade, ou melhor, de irmandade. Juan teve que
sair da Argentina para continuar vivo, naqueles dias vividos em
Buenos Aires, onde era preciso ir embora ou esconder-se. Então, eu
recebia com muita frequência seu filho Marcelo, fazendo o papel de
seu pai por algum tempo; depois o mataram, e a outra história é
bastante conhecida.
A mulher de Marcelo, Maria Cláudia,
foi seqüestrada na Argentina. Eram acusados do delito de agitar,
delitos de dignidade que tem a ver com o direito estudantil de
protestar. Esses eram os crimes de jovens como eles, que foram
assassinados muito cedo. Maria Cláudia foi assassinada no Uruguai,
onde já funcionava o mercado comum da morte, que foi o que melhor
funcionou até hoje, por que o Mercosur ainda tem graves
dificuldades. O mercado da morte funcionou muito bem naquelas horas
de terror, onde as ditaduras trocavam favores. Mandaram Maria Cláudia
grávida para o Uruguai, e aqui os militares uruguaios assumiram a
responsabilidade da tarefa. Esperaram que ela parisse, ela passou
seus últimos dias ou talvez seus últimos meses na sede de Boulevard
Artigas y Palmar do SID (2), onde foi inaugurada a placa em memória
a Maria Claudia e a todos os que estiveram lá.
Impressionou-me o contraste entre a
beleza exterior desse palácio e os horrores que ele escondia. Depois
dela dar à luz a mataram, e entregaram seu filho a um policial:
troca de favores. A partir de uma complicada busca de Juan e seus
amigos, conseguiu-se encontrá-la, e agora ela se chama Macarena
Gelman. Nos tornamos muito amigos, e certa vez almoçando em casa,
contou-me esta história, que é parte da história dos filhos dos
dias.
É uma história muito íntima,
muito privada, e lhe pedi autorização para publicá-la. É uma
história incomum, mas reveladora. Conta que, quando ainda não sabia
quem era e vivia na outra casa, com outro nome, nesse período sofria
contínuas insônias, que não a deixavam dormir à noite por que a
perseguiam sempre os mesmos pesadelos. Via alguns senhores
desconhecidos, muito armados, que a buscavam no quarto onde estava
dormindo, em baixo da cama, no roupeiro, em todas as partes, e ela
acordava gritando e angustiadíssima.
Durante muitíssimo tempo, por toda
a sua infância, teve esses pesadelos que a perseguiam e ela não
sabia por quê, de onde vinham. Até que conheceu sua verdadeira
história, e soube que ela estava sonhando os pesadelos que sua mãe
tinha vivido enquanto a modelava em seu ventre. A mãe, uma estudante
de apenas 19 anos, era perseguida de verdade por outros senhores
armados até os dentes, que a encontraram e a mandaram ao Uruguai
para morrer. Macarena estava no ventre dessa mulher acuada e
perseguida. Do ventre, ela padecia a perseguição que sua mãe
sofria, e depois ela sonhou isso e o transformou em seus próprios
pesadelos. Ela sonhou o que sua mãe tinha vivido. É uma história
que parece uma metáfora da transmissão, dos sofrimentos, dos
horrores, e também de outras continuidades que não são todas
horríveis.
-É um livro que contém muitas
histórias de mulheres. Por quê?
-Também há muitas histórias de
mulheres em meus livros anteriores, como Espelhos e Bocas
do Tempo. Há muitas histórias dos invisíveis, e as mulheres
ainda são bastante invisíveis. Há histórias de negros, de índios,
das culturas ignoradas, das pessoas ignoradas que merecem ser
redescobertas, por que tem algo que dizer e que vale a pena ouvir.
Neste último livro, Os filhos
dos dias, há uma história que me impressionou muito, que até
agora não tinha escrito ainda, que é de Juana Azurduy. Juana foi
uma heroína das guerras de independência. Encabeçou a tomada do
Cerro de Potosi, que estava nas mãos dos espanhóis. Ela era a
caudilha de um grupo guerrilheiro que recuperou Potosi das mãos dos
espanhóis. Depois continuou lutando pela independência, e perdeu
seus sete filhos e o marido nessa guerra. Finalmente, foi enterrada
numa fossa comum, tendo morrido na pior pobreza que se possa
imaginar. Antes, tinha recebido um título militar, e foram as forças
independentistas que lhe deram esse título que dizia no mérito: “à
sua viril coragem”. Necessitou-se de muito tempo para que uma
presidente argentina, Cristina Fernandez, lhe outorgasse o título de
General por sua “feminina valentia”.
-Um integrante da Real Academia
Espanhola assinalou como um erro utilizar expressões que
sobrecarreguem a linguagem. Era uma crítica à feminilização,
como, por exemplo, se utiliza todos e todas. O que você pensa a
respeito?
-O transcendente é o que há por
trás, ainda que por vezes, os conteúdos se reflitam nas palavras
que os expressam. Me parece muito ridículo quando uma mulher se
apresenta a mim e me diz “sou médico”. “É médica”,
respondo-lhe.
-Há muitas histórias dos povos
originários, da luta pelos recursos naturais, e o rol das
multinacionais. Em particular, uma história dedicada à selva
amazônica..
-Essa história sobre a selva
amazônica lembra que a Texaco, empresa petroleira que derramou
veneno durante muitos anos, arruinou boa parte da selva equatoriana.
Foi à julgamento, mas perdeu. As vítimas desse atentado à natureza
e as pessoas desse local não tinham meios econômicos, enquanto que
a Texaco contava com centenas de advogados. Contudo, depois de anos,
a ação foi ganha, mas ainda não foi colocada em prática por que
há muitas maneiras de apelar, de jogar a bola para fora, e para isso
não faltam doutores.
-No livro, há um olhar crítico
sobre os governos progressistas que ainda não despenalizaram o
aborto..
-O livro toca todos os temas sempre
a partir de histórias concretas. Não é um livro teórico.
-As 366 histórias não são
somente latino-americanas, você recorre o mundo.
-Há muitas histórias que merecem
ser recuperadas. Luana, por exemplo, foi a primeira mulher que
assinou seus escritos em tabuletas de barros. Aconteceu há quatro
mil anos, e dizia que escrever era uma festa. Essa mulher é
desconhecida, e vale a pena contar que essa história existiu.
-A respeito da crise
internacional, você resgata o que ocorreu na Islândia e o movimento
dos indignados na Espanha..
-Essa crise provém de um círculo
muito pequeno de banqueiros onipotentes. Ocorreu-me, para essa
história, um título sinistro que foi ”Adote um banqueirinho”.
Os responsáveis pela crise são os que mais tem se queixado e os que
mais dinheiro receberam. Eles têm sido recompensados por afundar o
planeta. Todo esse dinheiro destinado aos que causaram o pior
desastre na história da humanidade teria sido suficiente para dar de
comer aos famintos do mundo, com sobremesa incluída.
-Não lhe parece uma contradição
a existência do movimento dos indignados e que ao mesmo tempo o
Partido Popular tenha ganho na Espanha?
-A aparição dos indignados é das
coisas mais belas que ocorreram no mundo nos últimos tempos. Creio
que o melhor da vida é a sua capacidade de surpresa. O melhor dos
meus dias é o que eu ainda não vivi. Cada vez que uma cigana se
aproxima de mim para ler as mãos, peço-lhe que, por favor, lhe pago
para que não a leia. Não quero que me digam o que vai me acontecer,
o melhor que ávida tem é a curiosidade, e a curiosidade nasce da
ignorância do nosso destino. A explosão dos indignados começou na
Espanha, e logo se estendeu para outras partes. É uma boa notícia a
capacidade de indignação. Bem dizia meu mestre brasileiro Darcy
Ribeiro, que o mundo se divide entre os indignos e os indignados, e
que é preciso tomar partido, é preciso escolher.
Lembrei-me muito dele quando surgiu
esse movimento. Jovens que perderam seus empregos e suas casas por
responsabilidade desses malabarismos financeiros que terminaram por
despojar os inocentes de seus bens. Não foram eles que concederam
empréstimos impossíveis, não foram eles os culpados da bolha
financeira, e desse disparate que acontece na Espanha, de construir e
construir, e agora o país está cheio de moradias desabitadas e
gente sem casa.
O PP ganhou as eleições, é
verdade. A direita ganhou as eleições, e é preciso lutar para que
isso mude. Isso que aconteceu na Espanha também fala do desprestígio
das forças de esquerda que nascem na vida política prometendo
mudanças radicais e depois terminam repetindo a história, em vez de
mudá-la. Muita gente, sobretudo os mais jovens, se sente enganada e
abandonou a política.
(1) Os filhos dos dias (N.do T.)
(2) Uma das sedes do Serviço de
Informação da Defesa (SID) do Uruguai. (N. do T.)
Via Aporrea
Tradução:
Renzo Bassanetti
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